Já chegou ao fim o mês para o qual recomendámos a leitura do Henrique V, no entanto ainda não falámos uma vez sobre este livro. É uma grave falha que vou tentar colmatar agora, e pela qual peço desde já desculpa.
O mais marcante desta peça é sem dúvida a sua personagem central, o rei Henrique V de Inglaterra. Até porque é o único factor interessante da peça. Não que a peça seja má, passo a explicar:
Nesta obra, Shakespeare centra o seu olhar na grandiosa figura que foi o rei Henrique, e por isso propositadamente não acrescentou nada à peça que desviasse dele a nossa atenção. Acção tem pouca, resume-se a uma pequena introdução dos motivos que levam Henrique a invadir a França, mostra duas batalhas nas quais os Franceses são espancados e acaba com uma cena romântica na qual Henrique V conquista a sua prima depois de ter conquistado tudo o resto. Além disso temos um coro cuja única função é tornar a peça concisa, dando um resumo de tudo o que se passa entre cada acto.
Também as personagens são construidas sem muita profundidade psicológica, pois elas só interessam na medida em que se relacionam com o Rei.
Mas é isto que torna a peça tão grandiosa e tão bem construida, pois assim Shakespeare pode mostrar quem foi Henrique V.
E quem foi ele?
Henrique V em jovem era um devasso, que passava a vida nas tabernas com Jonh Falstaff (uma das mais divertidas personagem da peça Henrique IV) e seus amigos. O inicio do primeiro acto encontra Henrique V já após ter herdado a coroa de seu pai, e desde logo se revela muito mais maturo e ponderado que alguma vez se poderia supor.
Neste primeiro acto vemos já a sabedoria do Rei quando ele instiga os bispos a dizerem se a sua pertenção à coroa de França é justa. Pois a ele não lhe preocupam riquezas e títulos mas sim o seu povo, por isso nunca iria iniciar uma guerra sem ter a certeza da justiça e da Verdade da sua pretenção. É nesse sentido que ele afirma que "não haverá Rei de Inglaterra sem o ser de França", não como uma afirmação arrogante de tirano, mas com a consciência de que se é o herdeiro da coroa de França, é ele o responsável pelo destino e bem estar dos seus subditos, franceses ou ingleses.
É este o pensamento central de Henrique V ao longo de toda a obra: ser Rei não é um privilégio especial que lhe dê regalias e direitos. É o designio que Deus lhe destinou e sobre o qual tem que prestar contas: em primeiro lugar a Deus mas também ao seu povo.
Mas o mais espantoso é que esta consciência aguda que Henrique V tem da sua posição não o paralize, ainda para mais porque não foi educado para esse cargo nas tavernas em que se divertia com Falstaff. Mesmo sabendo do risco da sua empresa não hesita em partir para a guerra. Isto porque tem a consciência de que tudo o que acontece faz parte do designio de Deus. E isto dá-lhe a força e coragem de arriscar, mesmo em tarefas que pareçam humanamente impossiveis, como na batalha de Azincourt: "Assim como estamos não procuramos batalha, e assim como estamos não fugiremos dela."
E se isto é verdade para não temer as derrotas, é também verdade o suficiente para não se vangloriar das vitórias. Daí o Non nobis cantado pelos Ingleses após Azincourt.
Aprendamos com Henrique V a deixar tudo nas mãos de Deus, não para fugirmos da vida mas não a temer e enfrentar com galhardia e coragem tudo o que apareça.
Non nobis Domine, sed nomini tuo dai gloria
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