A Inquisição é provavelmente dos
assuntos mais comentados e menos conhecidos em Portugal. Todas as pessoas tem
opiniões sobre o assunto, baseadas nessa grande fonte de conhecimento que é o
“toda a gentes sabe que... a Inquisição mandou o Galileu para a fogueira/ a
Inquisição perseguiu todos os cientistas/ a Inquisição matou milhares de
pessoas em Portugal/ durante a Idade Média a Inquisição/ etc...”.
Ao mesmo tempo, sempre que
aparece alguém a proporcionar uma pequena informação histórica sobre o Santo
Oficio levanta-se logo um coro de acusadores, que explica que estamos a
defender a Inquisição e que no fundo, no fundo, somo anti-semitas e contra a
ciência.
Ora, uma pessoa explicar que a
Inquisição não foi como a cultura popular a pinta não o torna um defensor da
mesma. Torna-o simplesmente numa pessoa intelectualmente honesta. Por exemplo,
dizer que a Inquisição não matou Galileu, não quer dizer que eu ache que o
Galileu foi bem castigado, quer dizer apenas que eu sei o suficiente de
história para saber que ele foi condenado a prisão domiciliária até ao fim da
vida.
Antes de mais é preciso perceber
que quando se fala da Inquisição se fala em 3 tribunais diferentes: o Romano, o
Espanhol e o Português. Todos eles tinham grandes diferenças entre si. Neste
artigo vamos só falar da Inquisição portuguesa.
A Inquisição em Portugal nasce nos
anos trinta do século XVI (já em pleno Renascimento) no reinado de Dom João
III. Nasce num tempo complicado na Europa. Por um lado temos a divisão
religiosa que apareceu com a Reforma e que acabou com a Republica Cristã.
Por outro nasce também no tempo
em que a Europa está sobre forte ameaça do Islão. Os turcos, senhores do que
sobrava do império bizantino, ameaçavam a Europa de Leste e começavam a dominar
o Mediterrâneo.
Por fim, é também um tempo de
grandes convulsões políticas. Um pouco por toda a Europa central e do sul os
Habsburgo e os Valois travavam uma guerra sem quartel pelo domínio político.
Nestas lutas o reino de Portugal
sempre teve uma posição clara: fidelidade à Igreja, guerra aos infiéis,
neutralidade nas guerras entre cristãos. Contudo esta neutralidade não era
fácil, dada a situação geográfica do país. Aparentemente só uma politica de
empréstimos a Espanha, juntamente com muitos casamentos entre ambas as casas
reais assegurava a nossa independência.
A Inquisição nasce por isso, não
apenas por um desejo do rei de Portugal de pureza religiosa, mas também como
instrumento de unidade política. Disso é prova a relutância com que a Santa Sé
permitiu a criação de um tribunal português do Santo Ofício, pedido esse que já
tinha sido formulado por Dom Manuel I e negado.
De facto, a Santa Sé tinha medo
que o tribunal português seguisse o caminho do espanhol e se tornasse demasiado
independente (como se veio a verificar pelas constantes relações conflituosas
entre o papado e a Inquisição portuguesa).
Por isso a Inquisição no nosso país
sempre teve esta composição mista, de um tribunal que dependia tanto do Papa
como do Rei e que muitas vezes entrava em conflito com um dos dois (regra geral
nunca com os dois ao mesmo tempo, porque quando estava em conflito com o rei
recorria ao Papa e vice-versa).
Dito isto, o que era
concretamente a Inquisição? Era um órgão judiciário responsável por combater as
heresias. Claro que a noção de heresia era bastante vasta. Por exemplo a
bigamia era do foro da Inquisição porque o acusado descria do sacramento do
matrimónio.
O Tribunal do Santo Oficio não
era contudo um tribunal igual aos outros tribunais do reino. Não o era porque
não dependia totalmente do poder real. Por outro lado, também não dependia da
hierarquia da Igreja portuguesa, mas sim directamente de Roma. Isto permitiu à
Inquisição alcançar um grande poder e autonomia, que só seria diminuído no
consulado do Marquês de Pombal.
A Inquisição, dentro da sua
missão de combate à heresia, tinha duas grandes áreas de acção. Por um lado
tentava corrigir os hereges. E aqui podemos ver uma grande diferença entre a
Inquisição e os outros tribunais. Nos tribunais o normal é procurar saber se há
ou não culpa do acusado para depois lhe aplicar a pena devida. A Inquisição
procurava sobretudo o arrependimento dos acusados. Por isso para este tribunal
a morte de um dos acusados era uma derrota. O que Inquisição procurava era o
seu arrependimento público.
Para se ser considerado herege
era preciso ser-se católico, ou seja baptizado. O tribunal só tinha jurisdição
para julgar os baptizados. Para além destes só podia julgar não católicos que
impedissem o trabalho do Santo Oficio.
O grande problema foi que, no
tempo do Dom Manuel, os judeus que não tinham sido expulsos foram baptizados à
força. A justificação para este acto é que os judeus não tinham suficiente
discernimento e que por isso o rei teria legitimidade para forçar a sua
conversão.
Este acto deu origem a milhares
de cristãos-novos. Regra geral judeus que só formalmente eram católicos e que,
embora cumprissem exteriormente as obrigações de um católico (para não serem
julgado hereges), em segredo continuavam as suas práticas judaicas.
Por diversas vezes Roma condenou
o baptismo forçado dos judeus, sendo que muitos dos que foram julgado pela
Inquisição portuguesas apelaram para Roma e viram os seus baptismos declarados
inválidos.
A outra área de acção da
Inquisição era a censura sobre as ideias herética. Havia o Índex, com livros
proibidos. Era necessária autorização do Santo Oficio para a impressão de
livros novos. Os livros proibidos (e aqui não se tratava só de livros
religiosos, mas também de livros que faziam mal ao espírito, tal como os livros
eróticos) eram confiscados. Alguém que fosse discutir a sua tese na
Universidade tinha que submete-la primeiro ao Santo Oficio.
Em Portugal a Inquisição tinha
três mesas: Lisboa, Évora e Coimbra. Em todas elas havia Inquisidores e
promotores (para além de outros funcionários menores, como meirinhos e
guardas). Havia um Conselho Geral, que tinha poderes de supervisão sobre as
três mesas do reino. À cabeça do tribunal estava o Inquisidor Geral.
Na Inquisição em Portugal tiveram
papel importantíssimo os familiares do Santo Oficio. Pessoas que pertenciam a
este tribunal, mas que não era funcionários, que tinham poderes para denunciar,
revistar e até mandar prender suspeitos de heresia. Embora não fossem
assalariados o estatuto de familiar do Santo Oficio dava direito a vários
privilégios para além de ser uma honra social.
Do ponto de vista processual
havia três grandes diferenças entre este tribunal e os outros. A primeira era
de que bastava um testemunho para fazer prova. A segunda era de o processo era
secreto, não tendo sequer o acusado direito a informação sobre ele. O último
era de que bastava a acusação para o confisco dos bens. Estes três pontos
sempre foram muito contestados, inclusivamente pela Santa Sé.
Ainda na questão dos
procedimentos havia outras diferenças entre o Santo Oficio e os restantes
tribunais. Só se podia aplicar a tortura a quem fosse declarado fisicamente
apto para tal pelos médicos. A tortura não podia deixar sequelas físicas
permanentes. Durante a tortura havia sempre um médico presente que podia mandar
interromper a tortura. Os presos pobres eram alimentados e mantidos a expensas
do tribunal, ao contrário do que acontecia nos outros tribunais onde dependiam
da Misericórdia.
Por fim alguns dados: a
Inquisição portuguesa condenou a morte cerca de 1.000 pessos nos seus 285 anos
de existência. Só em 11% dos casos foi utilizada a tortura. Os processos da
Inquisição demoravam em média um ano. O último condenado à morte pela
Inquisição em Portugal foi o padre Gabriel Malagrida, cuja principal razão para
a condenação foi a sua oposição ao Marquês de Pombal. A Inquisição em Portugal
foi extinta em 1821, por decisão das Cortes.
A Inquisição cometeu muitos erros
e muitos abusos. Mas é uma instituição filha do seu tempo. Nasce e vive num
tempo onde a tortura era um meio de obtenção de prova considerado normal e onde
os crimes que tinham pena de morte eram muitos. Falamos também de um tempo onde
os delitos de opinião eram muitas vezes crime.
A Inquisição é por isso fruto da
sua época. Do centralismo do poder régio, da divisão religiosa, de uma maneira
de olhar e praticar a justiça que hoje nos é estranha. Podemos sempre
questionarmo-nos se a Igreja não devia fazer melhor que os outros. Não podemos
é continuar a fingir que este tribunal foi um objecto estranho caído do céu.
BIBLIOGRAFIA
História de Portugal; Rui Ramos,
Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalves Monteiro; Esfera dos Livros, 2010.
História de Portugal Vol. - I;
Fortunato de Almeida; Bertrand 2003.
História da Inquisição
Portuguesa; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva; Esfera dos Livros, 2013.
Dom João III; Ana Isabel Buesco;
Círculo de Leitores 2005.