Estou neste momento a ler o livro “O Estado e a Igreja em Portugal no início do séc. XX - A Lei da Separação de 1911”, versão simplificada da tese de doutoramento que o Padre João Seabra apresentou na Faculdade de Direito da Universidade Pontifícia Urbaniana. O livro é editado pela Princípia e pode ser encontrado em qualquer livraria (custa 21,90€).
Nas páginas deste livro é bastante fácil reconhecer o estilo do Padre João Seabra. Por um lado todo o rigor cientifico e académico que uma tese requere, sem nunca se afastar ou manipular os factos a seu favor. Mas ao mesmo tempo, aplica todo o seu espírito critico, a sua capacidade de ironia, de sarcasmo e a sua velocidade de pensamento para desfazer o mito da confessionalidade da monarquia liberal e da laicidade republicana. Impressionante ver como o Padre João vai completando um puzzle com os factos dispersos. Não é que o autor tenha de repente descoberto um facto novo, que nenhum outro historiador conhecesse. Simplesmente encaixou-os. A capacidade de tornar algo de complicado numa exposição simples é apanágio dos grande mestres.
O primeiro capitulo é sobre a situação da Igreja durante a monarquia liberal. Este período tem sido alvo de muita propaganda, desde dos alvores do movimento republicano, para fazer crer que a Igreja teria sido beneficiada pelo Estado e que tinha sido a república a acabar com esta situação.
Contudo, desde 1833 até à república, a Igreja foi perseguida e submetida ao poder do Estado. Os bispos foram sendo imposto ao Papa pelo Rei, apoiado pelas cortes (estas nomeações eram sobretudo políticas), os párocos passaram a ser nomeados por concurso público e os padres passaram a ser funcionários públicos, estando por isso sobre a alçada do Estado. A somar a isto tudo está a expulsão da ordens religiosas, com o respectivo roubo de todos os seus bens.
Ora, embora o catolicismo fosse religião de Estado, os liberais moveram durante 80 anos uma guerra à Igreja. Já no último governo monárquico, Teixeira de Sousa tentou expulsar mais uma vez os jesuítas. O regalismo cartista tinha reduzido a Igreja Portuguesa a uma repartição estatal: padres que eram caciques eleitorais, bispos nomeados por amizades políticos e todo um clero cada vez mais mal preparado e em desunião com o Santo Padre.
Os capítulos seguintes tratam de enquadrar historicamente a Lei da Separação no contexto do 5 de Outubro e de explicar como esta lei foi utilizada para perseguir e oprimir a Igreja.
O que Padre João demonstra na sua tese é que, embora a lei de 20 de Abril de 1911 seja formalmente (para ser mais exacto, nominalmente, pois mesmo na forma a lei é discriminatoria) uma lei de separação do Estado da Igreja, materialmente limitou-se a submeter em quase todos os aspectos a Igreja ao Estado.
Na perseguição à Igreja durante a República existe uma primeira fase, mais desorganizada e menos sistemática, caracterizada por uma acção de rua (logo a 5 de Outubro dois padres foram mortos e nesse mesmo mês o bispo de Beja teve que fugir do país para não o ser) e por medidas legislativas avulsas.
A 8 de Outubro de 1910, Afonso Costa expulsa de Portugal todos os jesuítas portugueses e estrangeiros, expulsa também os religiosos estrangeiros de outras ordens e dissolve as todas as ordens religiosas. Obviamente, confisca os poucos bens que as ordens tinham conseguido readquirir após a expulsão por Dom Pedro IV.
Até à Lei da Separação Afonso Costa vai tomando várias medidas, das mais gerais (como a o Código do Registo Civil que legisla a necessidade do registo civil para a celebração dos sacramentos) até às mais concretas (a destituição do Bispo de Beja, para qual inventará leis).
Mas a obra-prima é a Lei da Separação. Aí, de modo sistemático, Afonso Costa vai submeter todos os aspectos da vida da Igreja, desde a caridade ao culto, ao Estado.
Para não me alongar ainda mais falarei só dos dois pontos principais: as cultuais e as pensões eclesiásticas. Pontos esses que originarão de facto a separa da Igreja do Estado.
Não há um momento na república em que formalmente os bens da Igreja passem para o Estado. Para a Lei da Separação esses bens são do Estado, como se sempre tivessem sido. Todas as Igrejas, catedrais, colégios, seminários, hospitais, paços episcopais, residências paroquiais, alfaias litúrgicas. Nem os quintais dos pobres priores de aldeia escapam.
Contudo, o Estado cede para utilização os templos e as alfaias na igrejas onde se constituam cultuais. Ou seja, congregações, nas quais os ministros de culto não podem fazer parte dos órgãos, que administram o culto. Serão por isso as cultuais que ficarão responsáveis pelo culto, independentemente dos priores e dos bispos.
Por outro lado, depois de acabar com todas as formas de sustento do clero a lei dispõem que podem receber uma pensão do Estado os bispos e os párocos dos templos que onde se constituam cultuais. Para além disso os padres que celebrem o culto nas suas paróquias podem usar, a titulo gratuito, a residência paroquial, na medida das suas necessidades.
Ou seja, por um lado submete a si a administração das Igrejas. Por outro só permite aos padres que se submeterem a autoridade do Estado e não a do Papa e dos bispos, obter meios de sustento. Ainda para mais, uma pensão paga pelo Estado à cultual para depois a cultual pagar ao padre. Ou seja, o total vexame e submissão dos padres, tratados como funcionários de uma qualquer repartição estatal.
Os bispos recusam estas condições e instam os padres a recusa-las também. Ou seja, abdicam todos os bens, submetem-se a todos os vexames para defender a Libertas Ecclesiae. Recusam-se a trocar a comunhão com o Papa pela salvação dos bens. O resultado disto será que a Igreja perderá todo o seu património.
Contudo, e aqui chegamos ao ponto central da tese do Padre João, ao recusar qualquer controle do Estado sobre a Igreja, ao recusar qualquer dependência do Estado, os bispos e os padres na prática separam totalmente a Igreja do Estado.
Este livro é de facto muito importante. Primeiro para combater o mito que se instalou de que a Igreja teria sido benefeciada pela monarquia e que portanto mesmo os excessos da república que se reconhecem têm um pouco de justiça, como se fosse uma luta contra um opressor. Este é um mito no qual acreditam muitos católicos.
Depois é importante porque quem não recorda os erros do passado está condenado a repeti-los. É preciso perceber que muitos dos ataques que hoje vemos à Igreja, supostamente novo e frutos da liberdade actual, têm de facto 100, 170 e às vezes 260 anos.
Por fim, nos tempos que avizinham é sempre importante olhar para o testemunho daqueles que vieram antes de nós, que por amor a Cristo, ao Papa e a Libertas Ecclesiae, passaram por vexames, perseguições, prisões e viveram na pobreza.
É de facto uma graça que o Padre João tenha publicado a sua tese. Fazem falta padre que não tenham medo de afirmar a glória da história da Igreja em Portugal: uma história com falhas e pecados, mas sobretudo uma história de missão, santidade e coragem da qual nós, pela Graça de Deus e pela paternidade de sacerdotes como este autor, somos herdeiros.
P.S.: Já agora, fale a pena ouvir as declarações do Padre João na R.R., aqui.
Nas páginas deste livro é bastante fácil reconhecer o estilo do Padre João Seabra. Por um lado todo o rigor cientifico e académico que uma tese requere, sem nunca se afastar ou manipular os factos a seu favor. Mas ao mesmo tempo, aplica todo o seu espírito critico, a sua capacidade de ironia, de sarcasmo e a sua velocidade de pensamento para desfazer o mito da confessionalidade da monarquia liberal e da laicidade republicana. Impressionante ver como o Padre João vai completando um puzzle com os factos dispersos. Não é que o autor tenha de repente descoberto um facto novo, que nenhum outro historiador conhecesse. Simplesmente encaixou-os. A capacidade de tornar algo de complicado numa exposição simples é apanágio dos grande mestres.
O primeiro capitulo é sobre a situação da Igreja durante a monarquia liberal. Este período tem sido alvo de muita propaganda, desde dos alvores do movimento republicano, para fazer crer que a Igreja teria sido beneficiada pelo Estado e que tinha sido a república a acabar com esta situação.
Contudo, desde 1833 até à república, a Igreja foi perseguida e submetida ao poder do Estado. Os bispos foram sendo imposto ao Papa pelo Rei, apoiado pelas cortes (estas nomeações eram sobretudo políticas), os párocos passaram a ser nomeados por concurso público e os padres passaram a ser funcionários públicos, estando por isso sobre a alçada do Estado. A somar a isto tudo está a expulsão da ordens religiosas, com o respectivo roubo de todos os seus bens.
Ora, embora o catolicismo fosse religião de Estado, os liberais moveram durante 80 anos uma guerra à Igreja. Já no último governo monárquico, Teixeira de Sousa tentou expulsar mais uma vez os jesuítas. O regalismo cartista tinha reduzido a Igreja Portuguesa a uma repartição estatal: padres que eram caciques eleitorais, bispos nomeados por amizades políticos e todo um clero cada vez mais mal preparado e em desunião com o Santo Padre.
Os capítulos seguintes tratam de enquadrar historicamente a Lei da Separação no contexto do 5 de Outubro e de explicar como esta lei foi utilizada para perseguir e oprimir a Igreja.
O que Padre João demonstra na sua tese é que, embora a lei de 20 de Abril de 1911 seja formalmente (para ser mais exacto, nominalmente, pois mesmo na forma a lei é discriminatoria) uma lei de separação do Estado da Igreja, materialmente limitou-se a submeter em quase todos os aspectos a Igreja ao Estado.
Na perseguição à Igreja durante a República existe uma primeira fase, mais desorganizada e menos sistemática, caracterizada por uma acção de rua (logo a 5 de Outubro dois padres foram mortos e nesse mesmo mês o bispo de Beja teve que fugir do país para não o ser) e por medidas legislativas avulsas.
A 8 de Outubro de 1910, Afonso Costa expulsa de Portugal todos os jesuítas portugueses e estrangeiros, expulsa também os religiosos estrangeiros de outras ordens e dissolve as todas as ordens religiosas. Obviamente, confisca os poucos bens que as ordens tinham conseguido readquirir após a expulsão por Dom Pedro IV.
Até à Lei da Separação Afonso Costa vai tomando várias medidas, das mais gerais (como a o Código do Registo Civil que legisla a necessidade do registo civil para a celebração dos sacramentos) até às mais concretas (a destituição do Bispo de Beja, para qual inventará leis).
Mas a obra-prima é a Lei da Separação. Aí, de modo sistemático, Afonso Costa vai submeter todos os aspectos da vida da Igreja, desde a caridade ao culto, ao Estado.
Para não me alongar ainda mais falarei só dos dois pontos principais: as cultuais e as pensões eclesiásticas. Pontos esses que originarão de facto a separa da Igreja do Estado.
Não há um momento na república em que formalmente os bens da Igreja passem para o Estado. Para a Lei da Separação esses bens são do Estado, como se sempre tivessem sido. Todas as Igrejas, catedrais, colégios, seminários, hospitais, paços episcopais, residências paroquiais, alfaias litúrgicas. Nem os quintais dos pobres priores de aldeia escapam.
Contudo, o Estado cede para utilização os templos e as alfaias na igrejas onde se constituam cultuais. Ou seja, congregações, nas quais os ministros de culto não podem fazer parte dos órgãos, que administram o culto. Serão por isso as cultuais que ficarão responsáveis pelo culto, independentemente dos priores e dos bispos.
Por outro lado, depois de acabar com todas as formas de sustento do clero a lei dispõem que podem receber uma pensão do Estado os bispos e os párocos dos templos que onde se constituam cultuais. Para além disso os padres que celebrem o culto nas suas paróquias podem usar, a titulo gratuito, a residência paroquial, na medida das suas necessidades.
Ou seja, por um lado submete a si a administração das Igrejas. Por outro só permite aos padres que se submeterem a autoridade do Estado e não a do Papa e dos bispos, obter meios de sustento. Ainda para mais, uma pensão paga pelo Estado à cultual para depois a cultual pagar ao padre. Ou seja, o total vexame e submissão dos padres, tratados como funcionários de uma qualquer repartição estatal.
Os bispos recusam estas condições e instam os padres a recusa-las também. Ou seja, abdicam todos os bens, submetem-se a todos os vexames para defender a Libertas Ecclesiae. Recusam-se a trocar a comunhão com o Papa pela salvação dos bens. O resultado disto será que a Igreja perderá todo o seu património.
Contudo, e aqui chegamos ao ponto central da tese do Padre João, ao recusar qualquer controle do Estado sobre a Igreja, ao recusar qualquer dependência do Estado, os bispos e os padres na prática separam totalmente a Igreja do Estado.
Este livro é de facto muito importante. Primeiro para combater o mito que se instalou de que a Igreja teria sido benefeciada pela monarquia e que portanto mesmo os excessos da república que se reconhecem têm um pouco de justiça, como se fosse uma luta contra um opressor. Este é um mito no qual acreditam muitos católicos.
Depois é importante porque quem não recorda os erros do passado está condenado a repeti-los. É preciso perceber que muitos dos ataques que hoje vemos à Igreja, supostamente novo e frutos da liberdade actual, têm de facto 100, 170 e às vezes 260 anos.
Por fim, nos tempos que avizinham é sempre importante olhar para o testemunho daqueles que vieram antes de nós, que por amor a Cristo, ao Papa e a Libertas Ecclesiae, passaram por vexames, perseguições, prisões e viveram na pobreza.
É de facto uma graça que o Padre João tenha publicado a sua tese. Fazem falta padre que não tenham medo de afirmar a glória da história da Igreja em Portugal: uma história com falhas e pecados, mas sobretudo uma história de missão, santidade e coragem da qual nós, pela Graça de Deus e pela paternidade de sacerdotes como este autor, somos herdeiros.
P.S.: Já agora, fale a pena ouvir as declarações do Padre João na R.R., aqui.
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