O Presidente da República devolveu à Assembleia sem promulgação o Decreto n.º 232/X, que aprova o Regime Jurídico do Divórcio. Os argumentos invocados são semelhantes aos que múltiplos juristas, sociólogos e especialistas em temas familiares têm vindo a apresentar nos últimos meses. Mas o Presidente acrescentou uma consideração interessante: "Importa, todavia, não abstrair por completo da consideração da realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo" (Mensagem do Presidente à Assembleia da República n.º 3).
O problema desta lei é de facto que, embebida em princípios ideológicos e generalizações retóricas, abstrai "por completo" da consideração da realidade contemporânea. A Assembleia proclama ideais, invoca mandamentos, ralha com a sociedade. Só esquece a situação concreta. Como acontece por cá em tantos temas, raramente tão decisivos, temos leis elegantes mas irrealistas.
A finalidade das leis é proteger os fracos. Mas, ao eliminar a possibilidade do divórcio culposo, a Assembleia deixa as vítimas à mercê dos violadores. O Presidente dá-se ao trabalho de explicar em detalhe aos deputados: "Por exemplo, numa situação de violência doméstica, em que o marido agride a mulher ao longo dos anos - uma realidade que não é rara em Portugal -, é possível aquele obter o divórcio independentemente da vontade da vítima de maus tratos. Mais ainda, (...) o marido, apesar de ter praticado reiteradamente actos de violência conjugal, pode exigir do outro o pagamento de montantes financeiros" (n.º 6). "Noutro plano, são retiradas à parte mais frágil ou alvo da violação dos deveres conjugais algumas possibilidades que actualmente detém para salvaguardar o seu "poder negocial", designadamente a alegação da culpa do outro cônjuge ou a recusa no divórcio por mútuo consentimento" (n.º 7). Dificilmente se pode ser mais claro.
A finalidade das leis é defender a liberdade. Porém, o novo regime impõe-se à livre escolha dos esposos: "A circunstância de, mesmo contra a vontade manifestada por ambos os nubentes no momento do casamento, se impor agora na partilha um regime diverso daquele que foi escolhido (a saber, o da comunhão geral de bens), consubstancia, por assim dizer, uma 'revogação retroactiva' de uma opção livre" (n.º 12). As críticas são bastante mais e bastante graves, incluindo a "visão 'contabilística' do matrimónio" subjacente à lei (n.º 10) ou o "aumento dos focos de conflito que o legislador proporcionou" (n.º 11). A mensagem merece ser lida em pormenor.
Perante argumentos tão evidentes, o aspecto mais interessante da discussão é tentar compreender como se pode criar um tal monstro legislativo. Como caem os eminentes deputados da Nação em tais dislates? As reacções ao veto presidencial dão uma pista para o mistério, quando o classificaram de "conservador" e "retrógrado".
Os maiores desastres do século XX foram gerados por pessoas e grupos autonomeados progressistas e donos do futuro. Quando alguém, iluminado pelas forças da modernidade, despreza a realidade que o rodeia como obsoleta e tacanha, impõe sem contemplações as suas opiniões. Então surge o horror. Não é preciso ir longe para encontrar exemplos devastadores deste erro.
Há cem anos, a 3 de Novembro de 1910, Afonso Costa, recém-nomeado ministro da Justiça da jovem República Portuguesa, apresentou a primeira Lei do Divórcio, completada por outras a 25 de Dezembro (que não era Natal, mas "Festa da Família Portuguesa" por decreto da presidência do Governo Provisório de 12 de Outubro). Na altura governava uma pequena elite urbana que se sentia dona do futuro e impunha as suas teorias à massa ignara. O resultado dessa governação foi a maior catástrofe social e económica do Portugal moderno.
Hoje, um grupo de deputados, muitos herdeiros da mesma doutrina, aprova nova Lei do Divórcio, numa Assembleia dominada por um moralismo erótico e laxista, tão sufocante como o oposto. "Importa, todavia, não abstrair por completo da consideração da realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo.