A tomada da Bastilha está a ser comemorada em França com um convénio sobre “Imagens da Revolução”, que suponho proporá as do costume: a Revolução como triunfo da razão sobre o obscurantismo, e como triunfo da liberdade sobre a opressão. Quem propõe imagens não está, normalmente, interessado nos factos: quer manter funcionais os mitos e os símbolos do imaginário colectivo. Ora eu proponho-me escrever sobre factos. Alguns, claro: não falo de muitos outros, também importantes. Mas aqueles de que falo são factos reais, e sem os conhecer não se compreende a Revolução Francesa.
Igreja e Revolução; ideias comuns, factos reais
As simplificações dos manuais escolares e da cultura mediática são conhecidas: a Igreja era aliada do Antigo Regime e identificava-se com ele; opôs-se à Revolução e combateu os novos ideais; só tardiamente se juntou à causa da democracia e da liberdade, reconhecendo na trilogia “Igualdade, Liberdade, Fraternidade” uma reformulação actualizada do Evangelho. O Dr. Raul Rego e monsenhor Lefebvre estão de acordo em afirmar que, no Vaticano II, a Igreja aderiu à Revolução Francesa, embora esse facto os impressione de maneira diversa.
Observados de perto, porém, os factos adaptam-se mal às generalizações. Os “Cahiers de Doléances”, cujo estudo é fundamental para conhecer o estado de espírito e as reivindicações populares que serviram de base às transformações sociais subsequentes, não contêm elementos de luta anti-religiosa. O clero apoiou de maneira larga as reclamações do Terceiro Estado e, nos primeiros tempos da Revolução, inseriu-se na onda patriótica, benzendo as bandeiras da Guarda Nacional. Mesmo o “pôr à disposição da Nação” dos bens eclesiásticos, com a abolição dos direitos feudais a quatro de Agosto de 1789, não foi vivido como um momento de luta anti-religiosa: a Assembleia legislou imediatamente sobre a manutenção do clero. E a primeira festa da Revolução, 14 de Julho de 1790, foi uma missa campal, concelebrada no Campo de Marte, diante dos representantes dos departamentos, por trezentos sacerdotes, entre os quais o pároco de Saint-Sulpice, Monsieur de Paucemont, que será dentro em breve o chefe dos “refractários”. Claro que há divisões no clero – mas são políticas, e assumidas como tal. Um ano depois da tomada da Bastilha, não há nenhuma frente séria de conflito entre a Igreja e a Assembleia.
Constituição Civil, Igreja nacional, perseguição religiosa
Mas dois dias antes, a 12 de Julho de 1790, fora publicada a Constituição Civil do Clero: ora esta é uma lei anticatólica, de galicanismo extremo. O Papa não é sequer mencionado: a Igreja é definida legislativamente como uma igreja nacional, inteiramente submetida ao poder do Estado. Todos os bispos e padres a têm de jurar, sem o que ficam impedidos de exercer o ministério.
É assim que começa a luta da Revolução contra a Igreja. Esta luta não corresponde a nenhum movimento popular nem a nenhuma necessidade política. Corresponde à vitória de um grupo influente de clérigos anti-romanos, jansenistas e galicanos, que se apoiam no jacobinismo mais radicalmente anticristão para fazerem o que julgam ser uma reforma da Igreja: porque em todas as épocas se encontra sempre uma vanguarda da Igreja disposta a ser a retaguarda da História.
A fidelidade ao Papa, do clero e dos fiéis, que os legisladores não esperavam, criou uma crise de dimensões profundíssimas, cuja influência no futuro da Revolução, até ao bonapartismo e, finalmente, à restauração, foi imensa. Em Março de 1791 o Papa proibiu o juramento da Constituição Civil, pelo breve Quod Aliquantum. Só quatro bispos a aceitaram e, talvez, metade dos padres, embora muitos se retractassem depois da proibição papal. Os “ajuramentados” são maioritariamente rejeitados pelos fiéis; mas os “refractários”, que recusam jurar a lei, não podem exercer o culto e ficam vagas oitenta dioceses, mais de 20.000 paróquias. O clero refractário é sucessivamente destituído, condenado à deportação pela Assembleia Legislativa a 26 de Agosto de 1792, e à morte pela Convenção a 18 de Março de 1793. Entre 30.000 a 40.000 padres abandonam a França, quase 3.000 são guilhotinados. Os massacres de Setembro de 1792 fazem centenas de vítimas entre sacerdotes e religiosos.
A luta religiosa radicaliza a Revolução. Apenas um exemplo: a fuga de Luís XVI, terminada em Varennes, levando ao processo e morte do rei, dividiu irremediavelmente a França em dois blocos inconciliáveis; mas parece ter-se por documentalmente assente que a razão determinante da fuga do rei foi o terem-no obrigado, em Abril de 1791, a receber a comunhão pascal de um padre ajuramentado, pois o rei estava disposto a abdicar do poder absoluto mas não a viver contra a sua fé.
O genocídio franco-francês
Em 1793 começa a guerra da Vendeia. A chouannerie, antes que monárquica é católica, como diz um camponês angevino ao juiz Clémenceau: “Je ne demandons point de roi. Mais je voulons nos bons prêtres”. É a recusa das consciências de aderir à religião do Estado, o direito de prestar culto a Deus de acordo com as próprias convicções que os chouans defendem. Para os vencer, é preciso “incendiar tudo”, como diz Tourreau, general-chefe do Exército do Oeste, em carta ao Comité de Salut Publique de 17 de Janeiro de 1794. E a 11 de Fevereiro o comité dá a ordem: “Écrasez totalement cette horrible Vendée”. É a hora das Colunas Infernais, que recebem do general Grignon a proclamação demencial: “Entregar às chamas tudo o que puder ser queimado, e passar ao fio da baioneta todos os habitantes. Bem sei que pode haver alguns patriotas nesta região: é igual, devemos sacrificar tudo”.
O “carniceiro de Vendeia”, Westermann, escreve a 23 de Dezembro de 1793: “Fizemos uma carnificina (boucherie) horrível. Já não há Vendeia: exterminei tudo. Deixámos de fazer prisioneiros: a piedade não é revolucionária”.
Não se trata dos excessos habituais da soldadesca. É a minuciosa execução, se ouso dizer a palavra, dos decretos da Convenção de 1 de Agosto e de 14 de Outubro de 1793: “Enviar um exército incendiário, de modo a que nenhum homem nem nenhum animal possa subsistir sobre esse solo”. Do horrível massacre, que dura quase um ano, recordemos apenas uma data: 28 de Fevereiro de 1794, quando na Igreja des Lucs os exércitos da Convenção chacinaram até à última 110 crianças com menos de oito anos de idade.
A revolução contra o catolicismo
Daí em diante, até ao fim do século, a Revolução fará do catolicismo fiel ao Papa o seu inimigo principal. Até Roma levarão a guerra os exércitos franceses. Pio VI morre desterrado e prisioneiro de França. A concordata que um humilhado e heróico Pio VII celebrará, e a que Napoleão juntará os “Artigos Orgânicos”, colocará a Igreja francesa numa sujeição ao Estado de que levará um século a libertar-se. O esforço por criar, primeiro uma Igreja nacional, depois uma religião laica, com o culto do Ser Supremo e da Deusa Razão, ocupará grande parte das energias da Convenção, dos furores de Fouquier-Tinville, e a lâmina da guilhotina.
Revolução francesa e liberal
Até aqui, os factos de que prometi falar: documentos, nomes, datas – maçadas que todos deviam saber, se a História consistisse humildemente em contar o que sabemos do passado, em vez de ser, como normalmente é, inventar uma genealogia às opções do historiador que a escreve ou do imperador que a estipendia.
Mas depois de contar os factos, vou ousar também três comentários – para que ao menos a mim interesse alguma coisa do que escrevo...
Primeiro. A Revolução estabeleceu legislativamente uma Igreja nacional. Ora isto nada tem a ver com a liberdade: reencontramos essa tentativa no Kulturkampf, de Bismark, no cristianismo alemão de Hitler, na Igreja patriótica de Mao-Tsé-Tung, na Igreja popular dos sandinistas. Ao bater-se contra esta prepotência, a Igreja Católica bate-se pela liberdade de consciência, pelo direito de qualquer homem prestar culto a Deus segundo as suas convicções. A Revolução Francesa, com a Constituição Civil do Clero, estabeleceu-se como a raiz de todos os totalitarismos modernos.
Segundo. A guerra de Vendeia é o primeiro exemplo de guerra total que conhecemos, pelo menos desde que Dario derrotou o império assírio. Os campos de extermínio nazis, a destruição dos arménios, o genocídio do Camboja, são herdeiros das instruções da Convenção ao Exército do Oeste. Porque Pol Pot não é um sátrapa oriental, como gostamos de pensar: é um ideólogo que fez o Maio de 68 em Paris como jovem estudante e aprendeu o desrespeito da pessoa humana na escola onde ele melhor se ensina: na descristianização da cultura ocidental. A Revolução Francesa, com a Guerra da Vendeia, estabeleceu-se como modelo de todos os genocídios contemporâneos.
Terceiro. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II, os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, a Acta Final de Helsínquia, devem mais ao breve Quod Aliquantum de Pio VI, ao clero refractário, aos camponeses humildes da Vendeia e a Monsieur de Charette, do que à Revolução Francesa. O que a Revolução quis foi sacralizar o Estado, e para isso tentou destruir o cristianismo. A defesa da integridade do catolicismo representou, então como sempre, a fronteira da dignidade da pessoa humana.
E termino. Nos dez anos que vão de 1792 à Concordata de 1802, a Igreja Católica foi privada de todos os seus bens, de estatuto jurídico, da possibilidade de expressão pública, de qualquer forma visível de organização; viu destruídos centros de irradiação intelectual e espiritual, dispersas ou queimadas bibliotecas e acervos culturais seculares, profanados templos e conventos. Perdeu tudo. Mas ganhou aquilo com que se constrói, desde o princípio: mártires, milhares de mártires. Não é o menor dos grandes serviços prestados à causa da liberdade pelo Papa João Paulo II o ter ousado, contra os diktats da cultura dominante, mandar reabrir os processos de canonização dos mártires da fé que fez a Revolução Francesa.
Artigo publicado n’O Independente, 14 de Julho de 1989